Prevenção contra a Aids não é mais prioridade
Os números são altos, mas já foram maiores. A doença ainda assusta, mas já foi sinônimo de sentença de morte. De acordo com o Ministério da Saúde, nos primeiros 21 anos da epidemia no Brasil, entre os anos 1980 e 2001, o número de casos de Aids registrados foi de 275.850. No Estado, foram 21.577. Já nos 11 anos seguintes, entre 2002 e 2013, foram registrados 481.192 casos no País. O Rio Grande do Sul, no mesmo período, contabilizou 54.735 diagnósticos de HIV.
Percebe-se que não houve queda no número de ocorrências. Ao contrário, em 11 anos (2002 a 2013), o número de novas infecções é 74,4% maior do que nas duas décadas anteriores (1981 a 2001). O fato curioso é que foi exatamente nesse período, mais especificamente a partir de 1996, que o Brasil garantiu o acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, mesmo com mais atenção na rede pública, as infecções não cedem.
Com a disseminação do tratamento com antirretrovirais, as pessoas infectadas pelo HIV vivem mais. E vivem bem. Em outubro deste ano, 398,4 mil indivíduos estavam em terapia antirretroviral, o equivalente a 54% das pessoas que viviam com o vírus no Brasil. O número é bastante superior aos 125 mil beneficiados em 2002. No entanto, ainda é preciso levar em consideração que, somente em 2013, 35,2% dos casos de Aids deixaram de ser notificados ao Ministério da Saúde. O sub-registro questiona a qualidade do serviço de controle e vigilância, uma vez que deixa alguns infectados à mercê da própria sorte. Dessa forma, a evolução do combate à doença foi boa, mas não ótima. De acordo com a coordenadora do programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil, Georgiana Braga-Orillar, existe, agora, uma fadiga na questão da prevenção.
O assunto saiu da pauta. Os jovens de hoje não acompanharam o desespero dos ídolos de outrora, que enfrentaram e padeceram diante da enfermidade. A Aids é quase vista como uma peste negra, que foi perigosa no passado, mas não representa ameaças no presente. É por isso que os novos casos ainda são preocupantes. A camisinha, principal método preventivo contra a infecção, é deixada de lado. O tradicional comportamento inconsequente dos jovens aparece como possível justificativa para o desleixo com relação à proteção durante relações sexuais.
Quanto aos idosos, avanços na medicina proporcionaram um aumento na expectativa de vida. Sendo assim, pessoas na terceira idade ainda mantêm uma vida sexual ativa e precisam, naturalmente, se prevenir. Em 2002, houve 995 casos de Aids em pessoas com 60 anos ou mais notificados no Brasil. Em 2013, o número passou para 1.978. “Os idosos, principalmente as mulheres, têm vergonha de assumir que são sexualmente ativos. Têm vergonha de entrar em uma farmácia e comprar preservativo”, relata Georgiana. Para que essa situação mude, a coordenadora argumenta que é preciso trabalhar na sensibilização dos profissionais da saúde para identificar o idoso como público-alvo.
Sensação de segurança contribui para o aumento no número de casos nos últimos anos
Para o coordenador da Área Técnica HIV/AIDS e Hepatites Virais da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre, Gerson Winkler, os avanços médicos que dizem respeito ao tratamento e à assistência dos pacientes e a constatação de que os infectados vivem com uma qualidade de vida igual à dos não infectados certamente contribuíram para o afrouxamento das medidas preventivas. “Perdemos o contexto de visibilidade com relação ao HIV. Chegamos a pensar que seria preciso ressignificar questões acerca da prevenção e do uso da camisinha”, argumenta.
Porto Alegre é a capital brasileira que apresenta maior incidência de novos casos no País. Winkler acredita que fatores que dificultam o acesso ao serviço de saúde pública e à informação contribuem para que esse número seja tão alto. A SMS trabalha com especial atenção na Vila Cruzeiro e nas regiões da Lomba do Pinheiro e do Partenon, na zona Leste, que possuem alta incidência da doença. Além de prestar atendimento às escolas da região, a pasta, em parceria com a Secretaria Municipal da Educação, elaborou o “Galera Curtição”, um projeto que propõe diálogo com as escolas através de programas de auditório e gincanas.
A SMS estabeleceu, também, um acordo com proprietários de estabelecimentos noturnos, como bares e boates, para que disponibilizem gratuitamente camisinhas masculina e feminina e géis que facilitam a prática sexual entre idosos. Quem tem mais de 60 anos também está no foco de ação da secretaria. “Os idosos se reúnem nas unidades de atendimento à saúde, então trabalhamos para que a discussão sobre a prevenção esteja mais presente no cotidiano deles.”
De acordo com o último relatório da Unaids, divulgado em julho, entre 2005 e 2013, as mortes por Aids caíram 1/3 no mundo. No Brasil, os novos casos cresceram 11%. Para Georgiana, coordenadora do programa no País, esses números causam suspeitas de que a epidemia esteja voltando. Ela atribui parte do aumento das incidências ao silêncio da sociedade, da mídia e dos órgãos governamentais com relação aos perigos da Aids, uma vez que um falso sentimento de segurança possa ter se espalhado e provocado novas infecções.
Estado tem preocupação com grupos vulneráveis
A preocupação do Estado com relação à doença é basicamente a mesma demonstrada pelo município. De acordo com o coordenador da Política Estadual de DST/Aids, Ricardo Charão, a pasta vem trabalhando, desde 2011, de modo a aperfeiçoar a qualidade das ações preventivas e de tratamento aos gaúchos infectados. “Oferecemos apoio a organizações não governamentais que trabalham especialmente com as populações mais vulneráveis à infecção, como homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e usuários de drogas, que por vezes se contaminam devido à troca de seringas”, descreve.
Segundo Charão, entre 2012 e 2014, cerca de R$ 5 milhões foram investidos no trabalho dessas ONGs. Além disso, R$ 15 milhões do tesouro estadual foram aplicados em ações de prevenção e na redução de prejuízos originados devido à ausência de investimentos em governos anteriores.
Charão também destaca o distanciamento da geração atual do peso nefasto da doença. “Quem já alcançou a casa dos 40 anos, lembra bem do momento em que a epidemia se espalhou, relembra o sofrimento do cantor Cazuza e de outras figuras públicas que não sobreviveram à luta contra a Aids”, comenta. Hoje, com a universalização do tratamento e a distribuição gratuita dos medicamentos para a prevenção e cuidados, torna-se cada vez mais rara a morte de alguém vitimado pela doença. “É algo que afeta o comportamento, diferentemente das gerações anteriores, que passaram a usar preservativos e tomar muito cuidado porque temiam os riscos.” O coordenador destaca que, embora a educação sexual nas escolas seja importante para ensinar que a sexualidade é boa para o ser humano, a ideia de cuidado e de responsabilidade no uso de preservativo precisa ser igualmente difundida.
A atenção dispensada ao combate à infecção deve ser diferenciada para evitar um recrudescimento da epidemia. O Estado apresenta uma grande concentração de grupos vulneráveis. Contudo, há aqueles fora desse espectro que também contraem a doença. De acordo com Charão, o perfil dos adultos infectados mudou nos últimos anos e atinge grupos que não eram julgados vulneráveis, como homens heterossexuais entre 20 e 45 anos.
Mesmo que, nos últimos três anos, o Rio Grande do Sul tenha investido no combate, Porto Alegre ainda é a capital com a maior incidência. Para Charão, o quadro não mudará tão cedo. “Estamos captando, agora, casos antigos de infecção. Ainda seremos, por muito tempo, a capital com maior número de casos.”
Investimentos em campanhas são insuficientes
É inegável a constatação de que houve um relaxamento com relação aos cuidados acerca da prevenção da Aids. Uma das consequências negativas dessa nova realidade do vírus é que os investimentos federal, estadual e municipal em campanhas públicas de prevenção é quase nulo. De acordo com o Ministério da Saúde, o investimento federal em campanhas preventivas foi de R$ 24 milhões em 2013. No combate da Aids e das demais doenças sexualmente transmissíveis, foram distribuídos R$ 1,2 bilhão no ano passado. Cerca de R$ 770 milhões custearam a oferta dos medicamentos. Há quase dez anos, eram R$ 689 milhões totais e R$ 551 milhões reservados aos medicamentos.
Dos anos 1990 até hoje, a atenção da mídia e dos planos governamentais de saúde pública tomou novos rumos e o HIV deixou de ser tema recorrente. De acordo com a médica infectologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre Cynara Carvalho Nunes, houve um declínio de casos entre heterossexuais durante cerca de dez anos. “As pessoas começaram a relaxar e as ocorrências estão aumentando novamente. Quem não usa preservativo, está exposto ao vírus, mesmo em relações estáveis.”
Uma pesquisa da Caixa Seguros em parceria com o Ministério da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), de 2012, mostrou que quatro em cada dez jovens brasileiros dispensa o uso de preservativos. Além disso, três em cada dez ficariam desconfiados da fidelidade do parceiro caso ele propusesse sexo seguro. “A percepção de que todo mundo que tem HIV fica bem, que não passa de uma infecção, fez com que o cuidado diminuísse”, observa.
Enquanto a prevenção ainda tem de ser o foco principal das atenções, entidades da sociedade civil com reconhecida expertise no tema minguam por falta de recursos. Um exemplo é o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (Gapa/RS). O vice-presidente da ONG, Carlos Duarte, relata que o grupo existe há 25 anos e já ofereceu diversas ações de conscientização. Porém, hoje, está praticamente parado.
“A única atividade que funciona é o grupo de apoio às pessoas soropositivas, um tipo de grupo de autoajuda. As demais foram encerradas por falta de voluntários e de recursos para a manutenção da instituição e da própria sede, que pertence ao Estado”, lamenta. De acordo com ele, as preocupações governamentais não passam do interesse. “Ninguém faz nada para liberar recursos ou, pelo menos, para reformar a casa. Fizemos alguns reparos em 2000 com recursos nossos, mas não foram suficientes.”
Para Duarte, há também um abandono da sociedade civil que contribui para que os números no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre sejam tão altos. “Essa situação precária que o Gapa enfrenta é comum a outras instituições, também, há uns cinco ou seis anos. Os entes federativos abandonaram a população infectada. Aqui, a epidemia está fora de controle.”
O Gapa/RS oferecia plantões de auxílio aos infectados e não infectados. “Quase todo mundo sabe como se pega a Aids, mas muitos não sabem como evitá-la e como aplicar esses cuidados no cotidiano”, justifica Duarte. Embora o atendimento psicossocial não seja mais oferecido pelo grupo por falta de verbas, a entidade ainda é procurada como fonte de apoio e diálogo.
‘Nada substitui o uso da camisinha na prevenção’
A infectologista Cynara Carvalho Nunes destaca que os únicos medicamentos utilizados para o tratamento e prevenção da Aids são os antirretrovirais. “Eles podem ser usados tanto pelas pessoas já infectadas, como forma de controle do vírus, para mantê-lo em níveis baixos e evitar o contágio, como por aqueles que se expõem com mais frequência, mas não foram infectados. Nada, porém, substitui a camisinha, o método mais eficaz na prevenção”, explica.
De acordo com o Ministério da Saúde (MS), a distribuição da nova versão termoestável do Ritonavir e do comprimido que combina os medicamentos Tenofovir e Lamivudina, conhecido como “2 em 1”, será feita por todas as unidades credenciadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cerca de 135 mil pessoas em tratamento serão beneficiadas com as novas formulações, que poderão ser mantidas em temperaturas de até 30 graus, dispensando a câmara fria com temperaturas entre dois e oito graus. Em Porto Alegre, porém, a distribuição de medicamentos antirretrovirais diminuiu em 15,8% entre adultos. Em 2012, 30.296 doses foram distribuídas no Centro de Saúde Vila dos Comerciários. Em 2013, contudo, a quantidade caiu para 25.507.
A profilaxia pós-exposição (PEP) existe como medida de prevenção que consiste no uso de medicamentos até 72 horas após a relação sexual para reduzir o risco de transmissão do HIV. A PEP existe, no SUS, desde 2010, mas estava restrita aos usos de emergência e aos serviços especializados. O Ministério da Saúde encabeça, atualmente, um estudo que pretende avaliar a efetividade da PEP e a possibilidade da inserção da profilaxia pré-exposição no SUS, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Os estudos acompanharão a oferta de medicamentos antirretrovirais a um grupo de 1.300 pessoas que não são portadoras do HIV, mas que apresentam riscos elevados de infecção. O MS estima que os primeiros resultados sobre a viabilidade da oferta sejam apresentados em 2015. Os testes da prevenção combinada, que consiste no uso da profilaxia antes e após o sexo, vêm sendo realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Estímulo à realização de testes periódicos é crucial
O descaso acerca da prevenção pode resultar no descontrole visto no início da epidemia. Ciente disso, a Pastoral da DST/Aids, da Igreja Católica, vem tomando medidas. Recentemente, a organização promoveu o XII Seminário de Prevenção, que tratou da nova estratégia adotada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo ministério. O “testar e tratar” promove, principalmente, o uso do teste rápido do HIV. Aproximadamente 46% dos diagnósticos tardios terminam em óbito no mesmo ano da descoberta. O ministério também estima que 145 mil brasileiros tenham o HIV e não saibam. Sem o teste, somente saberão quando a doença aparecer. “Já chegarão ao sistema de saúde com doenças oportunistas, aumentando o custo do atendimento e comprometendo os benefícios dos antirretrovirais”, argumenta o assessor da Pastoral, frei Luiz Carlos Lunardi.
O frei Lunardi também desmente o mito de que a Igreja Católica se posiciona contra o uso de métodos contraceptivos, fato que condenaria o uso da camisinha, principal método de prevenção contra a Aids. “Partir da perspectiva ‘contra ou a favor’ é um lastimável equívoco. A Igreja chama atenção desde o início para um olhar e uma estratégia de prevenção mais amplos, considerando a diversidade da realidade e os comportamentos de cada pessoa. O preservativo precisa ser visto como um dos meios para se impedir a infecção”, argumenta.