“As obras anunciadas por Alckmin não vão ter nenhum papel nesta crise”
As relações entre o Governo de Geraldo Alckmin e o presidente daAgência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, são, no mínimo, conflitantes. Unidos no começo da crise hídrica em São Paulo, as divergências nas retiradas de água do sistema Cantareira levaram Andreu a abandonar em setembro o grupo técnico criado, junto ao Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE), para assessorar na gestão do sistema. A ruptura foi pública e, desde então, Andreu não poupa críticas à política tucana durante a crise. Apesar do Cantareira – único reservatório de São Paulo onde a ANA tem competências – estar se recuperando aos poucos com as últimas chuvas e beirar 13% do seu volume total, Andreu insiste que as medidas restritivas devem ser mantidas. “Não dá para afrouxar nada”, afirma. O Governo de Alckmin, por sua vez, o acusa de “disseminar o pânico”.
Pergunta. São Paulo vai ficar sem água?
Resposta. A cidade de São Paulo tem diversos reservatórios e o comportamento deles é bastante distinto: você tem reservatórios em situação crítica ainda como o Cantareira, outros saindo dela como o Alto Tietê, e outros em condições até satisfatórias. São Paulo não vai ficar sem água, muito embora algumas regiões, se a seca voltar depois deste período de chuva, terão que manter restrições significativas.
P. O que o senhor pensou naquele dia de janeiro quando Alckmin reconheceu por primeira vez a existência de racionamento e o associou diretamente às restrições da ANA de retirada de água?
R. As restrições da Agência são efetuadas conjuntamente com o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) e vem sendo praticadas desde março de 2014. O governador, que sempre negou qualquer risco durante o período eleitoral, buscou uma justificativa. Aquilo foi uma tentativa de justificar uma mudança de discurso, uma medida como a progressividade da tarifa [multas] em função de que 25% das pessoas em São Paulo estavam aumentado seu consumo. Ele tentou fugir dessa responsabilidade.
P. O senhor qualificou em outubro o uso de uma segunda cota de volume morto como uma “pré-tragédia”, O pior ainda está por vir ou você é um “disseminador de terror” como o acusa o Governo do Estado?
R. Isso é o que saiu na imprensa, mas não é o que eu disse. Eu disse que continuar avançando sobre os volumes mortos dos reservatórios ao invés de medidas restritivas, sem uma redução significativa das retiradas, ou contrapartida das retiradas, caracterizaria uma pré-tragédia. Ninguém sabe como vamos estar daqui a alguns meses. A questão de São Paulo vai envolver duas questões principais: a retirada de água e as condições climáticas. As chuvas de fevereiro a março são alentadoras, não porque tenham alterado o quadro, mas sinalizam uma mudança radical do padrão de chuvas. Porém, as condições permanecem críticas e as medidas restritivas, como a redução da retirada de água do Cantareira, devem ser mantidas.
P. O Governo comete um erro ao não adotar um rodízio?
R. As questões de saneamento são competência da Sabesp e não da ANA. Nossa crítica foi sempre que deviam operar-se os reservatórios de olho na segurança hídrica e, portanto, deveríamos restringir as condições de retirada de água do Cantareira. Este processo todo deixou claro que nós desejávamos que houvesse uma projeção de futuro para poder operar com maior segurança e São Paulo, através dos seus órgãos, buscaram sempre operar no sentido de reduzir a demanda mas sem olhar adequadamente os reservatórios. Tanto é que em fevereiro de 2014, quando a crise se apresenta e nós propusemos reduzir a captação de água, o Governo alertava que se reduzisse abaixo de 27 m3 por segundo provocaria um racionamento na cidade. Hoje está operando com 10 m3. Se o Governo tivesse aceito essa discussão naquele momento, com certeza estaríamos com mais água nos reservatórios.
P. E a Sabesp?
R. A operação da Sabesp é elogiável durante a crise, mas nós tratamos a questão de segurança hídrica. E nisso houve conflitos, que ainda permanecem, sobre quais são as medidas necessárias para proteger o reservatório. Nós sempre defendemos manter 10% do volume útil do reservatório. Como isso nunca foi feito e a Sabesp retirou sempre o que precisava, essas metas de segurança hídrica nunca foram observadas, tanto é que, agora, às vésperas de abril, o Governo diz que é impossível ter 10%. Claro que é impossível. Como essas medidas não foram tomadas no passado cada vez fica mais difícil atingir essa meta.
P. Como avalia as medidas e as obras empreendidas pelo Governo?
R. São projetos conhecidos, planejados há muito tempo, não foram feitos no passado não sei por qual razão, provavelmente para não gastar dinheiro com isso. Imagino que pela cultura da abundância, mas acabaram anunciadas no meio da crise. Mas não vão ter nenhum papel para reduzir os impactos da crise. Se a crise acabar, não terão seu papel, e se não acabar também não, pois são obras que só serão concluídas, na melhor das hipóteses, no final de 2016.
P. O que deveria ser feito e não está em discussão?
R. A discussão que deveria ser feita, e não foi, é qual era o risco que a população queria correr. Como você não sabe o futuro você sempre deve definir qual é o risco e conforto hoje com base no futuro. Se você acredita que vai chover mais lá na frente, você pode tirar mais água, mas se você está inseguro você tem que retirar menos. A gestão se dá hoje com uma projeção do futuro. Essa discussão não foi feita, tanto é que durante 2014 o governador insistiu em que não tinha crise. Passou-se uma tranquilidade em relação à situação do reservatório que não correspondia aos fatos.
P. Qual a posição do Governo no que se refere à concessão de financiamento a obras que estão sendo realizadas sem a devida licença ambiental e outorga, como se estivéssemos num estado de emergência?
R. As obras de segurança hídrica devem ser feitas como medidas preventivas, e não no meio da crise cuja execução fica ainda mais complexa.
P. O Governo (federal) estaria sendo cúmplice desse planejamento emergencial?
R. Claro que não. O planejamento é responsabilidade do governador. Em todo caso o Governo está procurando ajudar nesta situação cuja responsabilidade 100% é do Estado. Mas eles usam as competências como lhes convêm. As duas obras das represas planejadas no Cantareira são obras em rio federal. Sabe quantas vezes nos ligaram para planejá-las? Nenhuma. Agora quando dá um problema como o do racionamento, aí ele [o governador] tenta jogar essas responsabilidades. Infelizmente, é a lógica da política de má qualidade no meio de uma crise. A presidenta da Republica nos orientou desde fevereiro de 2014 a nos colocar à disposição para ajudar na solução da crise. Nós tentamos fazer isso o tempo todo. Infelizmente com dificuldades, pois na tomada de uma decisão técnica [as retiradas de água do Cantareira], a dificuldade acabou em uma politização.
P. O senhor propôs um futuro sistema de cotas, na próxima outorga, para a retirada de água da Cantareira, dependendo do estado dos reservatórios. Podemos esperar uma disputa pela água nos próximos meses, opondo cidades do interior e a Sabesp, que abastece a Grande SP?
R. Essa disputa já existe há muito tempo, desde a finalização dos sistemas na década dos 80. Qualquer processo de gestão de água envolve interesses. Se isso vai resultar em conflito é outra questão, nós queremos garantir que o processo de outorga seja o mais transparente possível. Se nós criamos esse ambiente de total transparência, vamos chegar a um acordo. No passado, a Sabesp tinha uma garantia da água e operava como desejava. Isso não estava fora da regra, mas uma situação de crise altera isso. Queremos que todos coloquem seu interesses, que podem ser legítimos, mas queremos uma nova regulação com mais segurança.
P. Qual a sua avalição sobre o aumento da tarifa pretendido pelo Governo?
R. Não é uma questão que envolva a ANA. Mas, numa situação de crise, a criação e a progressividade da tarifa [a multa] devem ser adotadas. E isso deveria ter sido feito no começo do ano passado. Essa proposta foi apresentada ao governador em abril, mas só foi adotada recentemente.
P. Por quanto tempo a Sabesp retirou mais água do Cantareira do que entrava [segundo especialistas, a partir de junho de 2014 a vazão retirada do Sistema Cantareira deveria ser de, no máximo 16,5 m3/s e a Sabesp continuou retirando 24,5 m3/s]? Descumpriu com isso a normativa da outorga?
R. Desconheço completamente essa afirmação. Um reservatório tem a função de regular as águas. Qualquer reservatório do mundo acumula água no período de chuva, e no período de seca você retira mais do que chega. O Cantareira, nesse aspecto, operou dentro das regras. Em fevereiro de 2014, quando constatou-se que o evento hidrológico não estava em linha com a séria histórica, a outorga foi suspensa e o DAEE (emissor da outorga e regulador estadual) e a ANA (regulador federal) passaram a fazer uma regulação especial para o período de crise. A Sabesp não descumpriu as regras estabelecidas na outorga, durante a sua vigência, nem as regras definidas depois, mas desde o início do processo, a ANA defende regras com o objetivo de garantir a segurança hídrica, portanto com regras mais conservadoras e retiradas menores. Por isso houve um rompimento das relações e a ANA saiu do grupo de assessoramento para a gestão do reservatório.